as coisas que perdemos no fogo


A maior parte das comparações que costuma se fazer na tentativa de posicionar Mariana Enríquez em algum lugar na história da literatura de horror aponta para nomes como Poe, Lovecraft ou Clive Barker, mas ainda que a autora argentina de fato trabalhe num registro que não foge da violência física e da atenção ao pânico corporal que é tão importante para o gênero, ou para uma porção dele, as histórias de 'As coisas que perdemos no fogo' me remetem muito mais ao barroco e ao sugestivo de Shirley Jackson ou Flannery O'Connor; está tudo ali, mas uma disrupção leve, uma piscadela, é suficiente para abalar os índices de realidade. Muito celebrada por associar o cortante e insólito do horror com o palpável da crítica social (cortante e insólito à sua maneira, se pensarmos no mundo em que vivemos), Enríquez é muito mais feliz em seus comentários quando se afasta do didático e do frontal. 'Pablito clavó un clavito', por exemplo, é talvez a mais aflitiva história da coleção e trata de machismo e masculinidade tóxica observando um protagonista de moral dúbia, que tenta vender sua atual rejeição aos "caprichos maternais" da esposa como perfeitamente cabíveis. O oposto simétrico ocorre em 'Sob a água negra', narrativa bastante caricata que tenta evidenciar a enorme distância que existe entre os servidores dos mecanismos mais altos poder e o povo miserável das favelas, somado a isso vai uma dose de violência policial; não funciona. É uma coleção que parece funcionar mais fora da página, numa boa discussão sobre suas imagens e símbolos, o que no fim das contas é um grande trunfo.

As coisas que perdemos no fogo (★★★)
Mariana Enríquez, Argentina, 2014 / Intrínseca