Quando compilados, os 17 minutos
de cobertura televisiva da participação de Tonya Harding nas Olimpíadas
de Lillehammer em 1994 tem uma gravidade e uma complexidade tanto mais
intensa que o disforme Eu, Tonya,
de Craig Gillespie. É óbvio que não se pode comparar a urgência
apreensiva de um registro documental às fabricações farsescas (bastante
efetivas, por vezes) de um filme francamente oscar-bait, mas existe um
desejo narrativo quase que fabricado naquelas imagens, uma fabulação que
certamente ganha bastante quando se tem o conhecimento dos percalços
pelos quais Harding havia passado e permanecia enfrentando até ali, mas
que pode hipnotizar um leigo absoluto com a mesma intensidade.
A
versão ficcional da história de Harding, no entanto, hipnotiza bem
menos. Se Gillespie não foge da tarefa básica de acompanhar a infância
da patinadora, sofrendo constantes abusos físicos e morais pelas mãos da
mãe, e nas fases seguintes vendo o ciclo se repetir através do namorado
e em sequência marido, ele o faz através de um filtro cômico
extremamente carregado. Alguns defendem isso como uma opção farsesca,
quase caricata em sua abordagem da violência, mas num 2018 de
Weisteingate e Time’s Up, me parece simplesmente estranho que as origens
da tragédia pessoal de uma mulher ganhem, deliberadamente, tons tão
“divertidos”. O mesmo poderia se dizer, por exemplo, da maneira
completamente arbitrária como Martin McDonagh trata os personagens
racistas e violentos de seu Three Billboards Outside Ebbing, Missouri,
e os concede redenção através de muletas narrativas tão fáceis como um
câncer incurável, mas aquele realmente me soa como um conto moral, uma
recriação contemporânea de Grimm. Talvez o ponto mais importante dessa
dualidade: Tonya Harding, uma das únicas pessoas no mundo a completar um
axel triplo com perfeição, existe individualmente, os policiais
histéricos de Ebbing são uma compilação dos grotescos do mundo.
Não sei se desculpar é a palavra mais apropriada mas, fosse Eu, Tonya
um filme mais cativante em outros aspectos que não suas escolhas
narrativas, seria possível apreciá-lo pelo esforço investido. O elenco
-sobretudo Margot Robbie e Allison Janney- chega muito próximo de
exercer esse papel redentor, praticando malabarismos com o material que
tem em mãos, mas são sabotados pela falta de foco que atrapalha o
projeto como um todo. Gillespie escolhe abrir seu filme com recriações
de entrevistas dadas por todos os envolvidos na tragédia de Harding, que
servem também como narração em off e de certa forma garantem ao filme
um caráter de mockumentário. Não satisfeito com esse dispositivo,
resolve apelar para quebras de quarta parede, telas divididas,
sequencias videoclípticas em câmera lenta, e o que claramente foi
pensado como um filme muito enérgico que não escondia sua divida com o
cinema indie dos anos 90, se torna um grande exercício de estilo
esvaziado de intenção. O receio em abraçar vigorosamente o camp e o
kitsch para não cruzar a linha que circunscreve a área de conforto do
filme-de-oscar certamente pode sufocar uma história que tinha tudo a
ganhar com essa estética, e sufocou.
Porém,
afastando-se de seus processos estéticos falidos, podemos encontrar
aqui e ali um lampejo de interesse, sobretudo na porção final do filme,
quando a derrocada de sua protagonista cruza os limites do drama
familiar e do filme de esporte e embarca numa tentativa de trama
policial, examinando os pormenores do ataque a Nancy Kerrigan.
Orquestrado “involuntariamente” pelo marido de Tonya, a quebra do joelho
da patinadora rival revela uma comédia de erros que em nada deve aos
absurdos dos Coen, e reafirma a posição de lutadora da personagem
título. Depois de vencer a família, a gravidade, e a si mesma, uma mídia
sensacionalista que a vende como a má perdedora perigosa parece um
desafio muito pequeno para Harding. A sequência em que o juiz profere
seu banimento completo do esporte é talvez o único momento realmente
impactante das longas duas horas de duração, e o que melhor, e mais
fielmente, representa todo o machismo que surgia tingido com cores menos
vivas aqui e ali. Ela provavelmente não é inocente, mas nem por isso
deixa de ser uma vítima.